Querido Nuno,
Ainda bem que os correios modernos tardam um clique para te chegar a carta às mãos a tempo do teu primeiro exame. Imagino-te como eu, há 10 anos. Nervoso - sem conseguir pregar olho. A passar em revista, numa cabeça que não pára há umas semanas, todos os poetas, escritores. O que tem que ter uma síntese, qual o argumento para o poeta conseguir ser um fingidor, qual o segredo para a Ode Triunfal falar de vida e de amor e de inspiração ao mesmo tempo e para o Fernando ter o apelido errado que, se a história se fizesse de lógicas, seria no plural.
Há dez anos eu também não preguei olho com medo de falhar. Afinal, são três anos em revista e outros nove a estudar para que, num belo dia de Junho, duas horas, um bilhete de identidade e um envelope selado trazido pela polícia depois tudo ficar em suspenso: a verdade é que aquele momento, naquele dia de Junho, pode decidir o futuro.
Mas Nuno: não te esqueças que um dia não são dias, como diz o ditado. E que, se estás assim nervoso hoje, em vésperas do teu exame de português, a tua mãe está nervosa, o teu pai está nervoso, a tua professora está nervosa. Os primos, os tios, os avós, e até o cão - se o tiveres - hão de ter notado o nervosismo e a ansiedade nas tuas respostas rápidas e tantas vezes tortas, na tua falta de apetite e até no tempo em que não estiveste em casa, fugido para o treino-para-limpar-a-cabeça ao fim da tarde ou para as jornadas de sol a sol na biblioteca municipal.
É muito trabalho acumulado, muito cansaço, muita ansiedade e estudo: tudo condensado num dia. E bem sei que nem estás preocupado com a tal greve de que os outros falam. O que te interessa e o exame, não é? Queres é fazê-lo. Depois só faltam mais dois.
Pois bem: é agora que te explico que, por isso mesmo de um dia não serem dias, amanhã é um dia muito importante. E sabes porquê? Porque, apesar de o centro do teu mundo seres tu - e de tu seres também o centro do mundo de tantas pessoas que te acompanham - há um mundo que não podes ignorar. Porque, naquele sábado de Setembro em que ficaste até ao fim da tarde a ver o pôr-do-sol de Verão, a escola já estava a preparar a tua chegada há que tempos. Os livros de ponto já estavam alinhados na sala dos professores, a D. Lala dava os últimos retoques no chão da B12 depois de já ter testado o quadro interactivo e a tua professora de português preparava-se para fazer a terceira noitada da semana: depois de preparar os testes de diagnóstico - tão comuns em Setembro, para ver como os alunos estão depois de dois meses e meio de férias e outros tantos de pouco trabalho (e não, Nuno, não estou a falar de ti que só enfia a carapuça quem quer!), estava a recortar as fotografias fotocopiadas a preto e branco do livro de ponto para as colar na caderneta do professor - tipo livro de cromos que chega ao fim do ano completamente a abarrotar de notas de trabalhos de grupo, trabalhos individuais, orais, participação, testes e assiduidade - e alinhavar o que escrever no relatório da direcção de turma, já com os elementos disponíveis sobre as disciplinas escolhidas pelos alunos que vinham das matrículas, ainda em Julho.
Porque, sabes que naquele domingo em que misturavas a ressaca do sol com a daquelas imperiais que bebeste a mais na esplanada enquanto petiscavas uns caracóis, o teu professor organizava os dossiers do último ano, olhava outra vez para a tua cara e a dos teus colegas e pensava no que podia fazer convosco - conhecendo-vos há já três anos - para que o 12º fosse um ano inesquecível, em tudo e também em boas notas. Porque, já que os planos de recuperação - por ordem do governo - têm que ser feitos uns atrás dos outros - então que sejam bem feitos, tão bem feitos que nem seja preciso tirá-los das micas brilhantes já metidas nas pastas naquela estante de onde ele já tirou os cadernos e os livros do ano passado e arrumou, por alturas e todos encadernados, os novos manuais adoptados pela primeira vez este ano. Porque Nuno, quando tu naquele domingo meteste os cabelos alourados da praia na fronha branca da almofada, eles ainda ficaram acordados a preparar as aulas de apresentação e as primeiras matérias, que o 12º ano é ano de correria e não há tempo a perder.
E quem fala de Setembro fala das pausas lectivas de Novembro: o Pão por Deus dos professores é na escola, nas reuniões intercalares. Como as vésperas de Natal intercalam broínhas com avaliações e testes de recuperação. Como a pausa do Carnaval é um motivo de discussão de planos de reforço, de decisões sobre apoios. Como a Páscoa é motivo de angústia porque "o terceiro período já aí vem" e "ainda falta tanta coisa para o exame". O ano, Nuno, passa a correr. E graças ao ano que passou - e aos outros onze que entretanto também voaram - as aulas sobre resumos e sínteses do 12º estão mais presentes do que nunca, o tempo para as enumerações é pouco e a metonímia é o teu forte. Mas Nuno, não tomes o todo pela parte. Sabes que a doze horas do primeiro exame este pode parecer o momento decisivo para reclamar de tudo e mais alguma coisa - os 18 estão ainda frescos, acabadinhos de fazer; andas stressado com tanto estudo e tão pouco tempo para as coisas mais divertidas e até a tua mãe te falou na "vergonha" que é isto de os professores decidirem que a greve havia de ser logo no ano em que te calhou a ti fazer exame. Ora bolas. Mas lembra-te que não há-de ser em duas horas que vais deitar doze anos de aprendizagem ao ar.
Prepara-te para engolir este sapo em seco: pode ser preciso. É que, amanhã, se os professores quiserem, podem paralisar o futuro do país. E sabes: é preferível que o paralisem amanhã para capitalizarem as gerações que aí vêm. Como sabes, não deves deixar para amanhã o que podes fazer hoje.
Espero que consigas lidar com os nervos face ao desconhecido. Olha bem, observa, pergunta porquê. Tenta entender porque refilam, de que se queixam, que carga têm em cima. Questiona, tenta saber mais: não é preciso que saibas quantos relatórios preenchem, a quantas avaliações são sujeitos, quantas reuniões têm por ano. Mas tenta que estes números não sejam apenas números nas tuas estatísticas: lembra-te que são pessoas e que essas pessoas passaram contigo a maior parte das horas da tua vida nos últimos doze anos.
Ah, e boa sorte. O maior exame é este, de ver os outros fazer para depois saber como se faz.
P.S.: Querido Nuno, não te disse tudo o que queria mas disse-te o que considero fundamental. Agora que és doutor, Caro Nuno, as coisas mudaram. A paixão da profissão deixou vagos os lugares para a frustração e a desmotivação. Tanto papel para preencher, tanta nota máxima com prazo de validade, e até algumas lágrimas choradas no meio de queixas que nada têm de vão e tudo têm de legítimo. E sabes, Nuno, é energia que consome o país. E, como sabes, a energia está cara, o poder de compra é cada vez menor e estamos a hipotecar um sector estratégico. Não deixes que os dias de tristeza se transformem em anos. E que os anos hipotequem gerações inteiras. Porque dessas gerações pode não restar nada. Pode nem restar país.
Ainda bem que os correios modernos tardam um clique para te chegar a carta às mãos a tempo do teu primeiro exame. Imagino-te como eu, há 10 anos. Nervoso - sem conseguir pregar olho. A passar em revista, numa cabeça que não pára há umas semanas, todos os poetas, escritores. O que tem que ter uma síntese, qual o argumento para o poeta conseguir ser um fingidor, qual o segredo para a Ode Triunfal falar de vida e de amor e de inspiração ao mesmo tempo e para o Fernando ter o apelido errado que, se a história se fizesse de lógicas, seria no plural.
Há dez anos eu também não preguei olho com medo de falhar. Afinal, são três anos em revista e outros nove a estudar para que, num belo dia de Junho, duas horas, um bilhete de identidade e um envelope selado trazido pela polícia depois tudo ficar em suspenso: a verdade é que aquele momento, naquele dia de Junho, pode decidir o futuro.
Mas Nuno: não te esqueças que um dia não são dias, como diz o ditado. E que, se estás assim nervoso hoje, em vésperas do teu exame de português, a tua mãe está nervosa, o teu pai está nervoso, a tua professora está nervosa. Os primos, os tios, os avós, e até o cão - se o tiveres - hão de ter notado o nervosismo e a ansiedade nas tuas respostas rápidas e tantas vezes tortas, na tua falta de apetite e até no tempo em que não estiveste em casa, fugido para o treino-para-limpar-a-cabeça ao fim da tarde ou para as jornadas de sol a sol na biblioteca municipal.
É muito trabalho acumulado, muito cansaço, muita ansiedade e estudo: tudo condensado num dia. E bem sei que nem estás preocupado com a tal greve de que os outros falam. O que te interessa e o exame, não é? Queres é fazê-lo. Depois só faltam mais dois.
Pois bem: é agora que te explico que, por isso mesmo de um dia não serem dias, amanhã é um dia muito importante. E sabes porquê? Porque, apesar de o centro do teu mundo seres tu - e de tu seres também o centro do mundo de tantas pessoas que te acompanham - há um mundo que não podes ignorar. Porque, naquele sábado de Setembro em que ficaste até ao fim da tarde a ver o pôr-do-sol de Verão, a escola já estava a preparar a tua chegada há que tempos. Os livros de ponto já estavam alinhados na sala dos professores, a D. Lala dava os últimos retoques no chão da B12 depois de já ter testado o quadro interactivo e a tua professora de português preparava-se para fazer a terceira noitada da semana: depois de preparar os testes de diagnóstico - tão comuns em Setembro, para ver como os alunos estão depois de dois meses e meio de férias e outros tantos de pouco trabalho (e não, Nuno, não estou a falar de ti que só enfia a carapuça quem quer!), estava a recortar as fotografias fotocopiadas a preto e branco do livro de ponto para as colar na caderneta do professor - tipo livro de cromos que chega ao fim do ano completamente a abarrotar de notas de trabalhos de grupo, trabalhos individuais, orais, participação, testes e assiduidade - e alinhavar o que escrever no relatório da direcção de turma, já com os elementos disponíveis sobre as disciplinas escolhidas pelos alunos que vinham das matrículas, ainda em Julho.
Porque, sabes que naquele domingo em que misturavas a ressaca do sol com a daquelas imperiais que bebeste a mais na esplanada enquanto petiscavas uns caracóis, o teu professor organizava os dossiers do último ano, olhava outra vez para a tua cara e a dos teus colegas e pensava no que podia fazer convosco - conhecendo-vos há já três anos - para que o 12º fosse um ano inesquecível, em tudo e também em boas notas. Porque, já que os planos de recuperação - por ordem do governo - têm que ser feitos uns atrás dos outros - então que sejam bem feitos, tão bem feitos que nem seja preciso tirá-los das micas brilhantes já metidas nas pastas naquela estante de onde ele já tirou os cadernos e os livros do ano passado e arrumou, por alturas e todos encadernados, os novos manuais adoptados pela primeira vez este ano. Porque Nuno, quando tu naquele domingo meteste os cabelos alourados da praia na fronha branca da almofada, eles ainda ficaram acordados a preparar as aulas de apresentação e as primeiras matérias, que o 12º ano é ano de correria e não há tempo a perder.
E quem fala de Setembro fala das pausas lectivas de Novembro: o Pão por Deus dos professores é na escola, nas reuniões intercalares. Como as vésperas de Natal intercalam broínhas com avaliações e testes de recuperação. Como a pausa do Carnaval é um motivo de discussão de planos de reforço, de decisões sobre apoios. Como a Páscoa é motivo de angústia porque "o terceiro período já aí vem" e "ainda falta tanta coisa para o exame". O ano, Nuno, passa a correr. E graças ao ano que passou - e aos outros onze que entretanto também voaram - as aulas sobre resumos e sínteses do 12º estão mais presentes do que nunca, o tempo para as enumerações é pouco e a metonímia é o teu forte. Mas Nuno, não tomes o todo pela parte. Sabes que a doze horas do primeiro exame este pode parecer o momento decisivo para reclamar de tudo e mais alguma coisa - os 18 estão ainda frescos, acabadinhos de fazer; andas stressado com tanto estudo e tão pouco tempo para as coisas mais divertidas e até a tua mãe te falou na "vergonha" que é isto de os professores decidirem que a greve havia de ser logo no ano em que te calhou a ti fazer exame. Ora bolas. Mas lembra-te que não há-de ser em duas horas que vais deitar doze anos de aprendizagem ao ar.
Prepara-te para engolir este sapo em seco: pode ser preciso. É que, amanhã, se os professores quiserem, podem paralisar o futuro do país. E sabes: é preferível que o paralisem amanhã para capitalizarem as gerações que aí vêm. Como sabes, não deves deixar para amanhã o que podes fazer hoje.
Espero que consigas lidar com os nervos face ao desconhecido. Olha bem, observa, pergunta porquê. Tenta entender porque refilam, de que se queixam, que carga têm em cima. Questiona, tenta saber mais: não é preciso que saibas quantos relatórios preenchem, a quantas avaliações são sujeitos, quantas reuniões têm por ano. Mas tenta que estes números não sejam apenas números nas tuas estatísticas: lembra-te que são pessoas e que essas pessoas passaram contigo a maior parte das horas da tua vida nos últimos doze anos.
Ah, e boa sorte. O maior exame é este, de ver os outros fazer para depois saber como se faz.
P.S.: Querido Nuno, não te disse tudo o que queria mas disse-te o que considero fundamental. Agora que és doutor, Caro Nuno, as coisas mudaram. A paixão da profissão deixou vagos os lugares para a frustração e a desmotivação. Tanto papel para preencher, tanta nota máxima com prazo de validade, e até algumas lágrimas choradas no meio de queixas que nada têm de vão e tudo têm de legítimo. E sabes, Nuno, é energia que consome o país. E, como sabes, a energia está cara, o poder de compra é cada vez menor e estamos a hipotecar um sector estratégico. Não deixes que os dias de tristeza se transformem em anos. E que os anos hipotequem gerações inteiras. Porque dessas gerações pode não restar nada. Pode nem restar país.
muito bom Mariana, acho que vou mostrar à minha mãe. beijinho. a outra Mariana
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