segunda-feira, 4 de março de 2013

Diários de Atacama: O relógio suíço - e atrasado - do Chile e as horas que se demoram para chegar onde se quer

Quem não vai ao relógio de Viña del Mar nunca esteve na cidade. A frase é do nosso guia de excursão mas podia ser de outro qualquer, porque é repetida até à exaustão. Uma hora e meia de autocarro Santiago-Viña e chegamos à costa chilena. Há burburinho na estação de autocarros, com abordagens agressivas dos operadores turísticos e taxistas, ansiosos por vender os seus serviços. Carregados com as malas de viagem e vestidos de Verão, mesmo desviando o olhar e agradecendo com um gracias simples para disfarçar o sotaque, é impossível não saltarmos à vista. A nossa cor de pele é a mais clara das redondezas. E a nossa roupa, a mais fresca. Em Viña as noites são mais frescas do que em Santiago e, à hora que chegamos, já não falta tudo para anoitecer e, por isso, está mais fresco.

No terminal de autocarros, à entrada do centro da cidade, um senhor vem ter connosco. Identifica-se com um cartão - trabalha numa empresa de excursões turísticas. Dizemos-lhe que não temos nada de passeios marcados mas que o que queremos mesmo naquela altura é ajuda para chegar ao hostel. O colete castanho diz "Turismo" a vermelho, bordado no bolso. Com um mapa, explica e marca os pontos mais importantes de Viña del Mar, ponto obrigatório de passagem de estrangeiros na época do Verão e refúgio principal da classe média que vive em Santiago a maior parte do ano, durante o período de férias. Vai marcando com uma caneta os pontos de interesse entre Viña, Reñaca - outra praia a norte - e Valparaíso - onde fica outra das casas de Pablo Neruda - e indica-nos a suposta rua do nosso hostel. Digo suposta porque a afirmação surpreende-nos. Melhor, dá-nos medo. "Que raro, no me sueña". Como assim, não lhe lembra nada? 15 minutos a pé pela rua principal - a mesma que dá acesso ao terminal de autobuses, para depois virar à esquerda. Viña está meio caótica, com obras pelos passeios que nos obrigam a andar degrau acima-degrau abaixo com as malas. Tanto que, a meio caminho - com a mistura do calor - já tenho bolhas nas mãos de arrastar a mala vermelha. É preciso fazer gincana para conseguir circular com as bagagens entre degraus, passadeiras, buracos, pessoas e cães.

Os cães, como já disse, são presença constante. Há muitos, deitados no chão, "aos caídos". Em Santiago já havia e em Viña confirmou-se a tendência: há mil de cães nas ruas das cidades chilenas.
Dizia eu que uns quinze minutos depois chegámos à rua do hostel. As indicações eram para virar à esquerda. No início, as ruas e os números não coincidem: pergunto, há um homem que desmente ser aquela a rua. A referência que tínhamos - um funicular (há muitos em Viña mas, muitos deles, inactivos) - era ali. O Pedro vai até ao funicular e volta com más notícias: há muita escada para subir porque o último número da porta à vista é 10 a menos do que o que procurávamos. Suspiramos e metemos os pés ao caminho. Arrastámos as malas até às escadas. Subimos. Era o nosso número. Tocámos à campainha. Largámos as malas e subimos para acertar contas.

O hostel é pequeno, com a casa da recepção feita de madeira. Diz-nos a Marisol que não podemos pagar com cartão - só com dinheiro. Marisol é uma mulher com não mais de 50 anos, animada, com um ar de meia louca. Simpática, conta-nos que a casa pertencia a um suíço. Daí a madeira nas paredes a imitar um challet. E daí também, o nome da rede da internet "chalet suiço". Largamos as malas no quarto triplo, actualizamos o estado no Facebook, saímos para jantar e fazer uma caminhada a pé. Passamos o relógio enfeitado com flores e prometemos nova passagem no dia seguinte, ainda com luz natural. Passamos a praia - um vento frio de rachar - o Sheraton (para confirmar o lugar onde, no dia seguinte, deveríamos levantar o carro alugado para ir a Valparaíso e seguir depois para norte), o castelo, a praia outra uma espécie de "lago", o casino. Jantamos num japonês - o primeiro bom jantar da viagem - perto da zona mais arranjada da cidade.

Viña del Mar é ideal para andar a pé por todo o lado e é fácil perceber a mecânica da cidade, aparentemente mais habituada ao turismo do que Santiago. Depois do jantar decidimos ir ao Casino. Isso mesmo. O casino foi construído numa das partes de um hotel de 5 estrelas e nós, como bons desenrascados, não nos apercebemos que estávamos a entrar pela porta do hotel, e não pela outra. Um segurança com ar inquisidor pergunta-nos onde vamos. Explicámos que íamos ao Casino e lá nos deixou passar. Eram salas e salas de slotmachines, muitas mulheres de meia idade, sozinhas a fumar e a jogar. Eles queriam jogar sem ser em máquinas mas não havia opção. Bebi uma água e abalámos.

O percurso relógio-casino é repetido até à exaustão na visita do dia seguinte, que marcámos por telefone durante o pequeno-almoço, logo de manhã, por telefone. O Raul - que nos tinha explicado onde era o nosso hostel - promete ir buscar-nos daí a mais ou menos uma hora (qualquer coisa como às 11h da manhã). A carrinha chega ao hostel para nos buscar, em cima da hora. O plano de visitarmos os principais pontos de atracção sem termos que andar de um lado para o outro de carro - a ideia que nos deu é de que os chilenos não são propriamente pêra-doce a conduzir - agradou-nos bastante e optámos por adiar um dia o levantamento do carro alugado. Passeio por Viña, almoço em Reñaca e tarde em Valparaíso - visita a casa do Pablo Neruda ainda por decidir, dependendo do tempo que nos restasse.

Na carrinha, dois equatorianos praticamente mudos (mais ou menos da nossa idade), um casal de argentinos e uma espanhola a viajar sozinha compõem o ramalhete de passageiros. A vista do cerro para Viña del Mar - que também deixa adivinhar a cidade portuária de Valparaíso, das casinhas às cores e dos incontáveis funiculares - é bonita e compensa bem a subida pelo caminho de curvas. O entra e sai da carrinha não custa muito, mesmo que as paragens sejam frequentes e, muitas vezes, desnecessárias (acho até que, muitas vezes, o condutor parava só para acender mais um cigarro). Custou-nos mais a falta de animação dos equatorianos, provavelmente namorados, com não mais de 30 anos. Que apatia, nossa!



Visitámos uma lagoa coberta de ervas e algas, poluída com um "micróbio estranho que entrou na água" e que as autoridades ainda estavam a tentar erradicar. Depois visitámos a entrada do estádio de Viña, prestes a ser demolido (um mês depois) para a construção do novo, a propósito da Copa América. Repetimos duas vezes a visita ao casino, parámos no relógio para tirar fotografias e visitámos o Palácio Vergara, fechado para recuperação desde o último terramoto, em 2012, que abriu muitas fendas no edifício.

Houve uma coisa que não percebi: o fascínio pelo casino, um edifício branco redondo; e, o relógio, oferecido pelos suíços ao município de Viña mas que nem sequer dá horas certas (precisa que lhe dêem corda e isso não deve acontecer sempre que é necessário). Fomos praticamente obrigados a almoçar num restaurante caro e fraco - o que me irritou bastante. No programa da viagem estava incluída uma paragem para almoço em Reñaca com recomendações de restaurantes para almoçar. Acontece que quando parámos em Reñaca, fomos imediatamente conduzidos para um restaurante demasiado caro para a qualidade da comida. Comemos peixe grelhado, camarões al ajillo (com muito pouco sabor) e pagámos um balúrdio. Na verdade, foi naquele momento que comecei a perceber que a comida chilena não é assim "tan rica" como acontece noutros países da América Latina. O Brasil tem a feijoada, a Argentina o bife de chorizo, e o Chile as empanadas de piño que, confesso, não me convenceram. Há pouca variedade de comida e pouca gente a jantar fora, mesmo em Viña e, mesmo em pleno período de férias de Verão. Saídos de Reñaca (uma praia que não é nada de espectacular quando comparada com as praias portuguesas) seguimos rumo a Sul, em direcção a Valparaíso. À entrada da cidade, contentores coloridos que só apetece fotografar, contrastam com leões marinhos que disputam lugar numa plataforma de betão metida no mar, em pleno Oceano Pacífico. O trânsito em Valparaíso é caótico - já tinha dado para perceber noutras cidades e os guias bem nos tinham avisado que era mesmo assim - e damos graças por não termos ido buscar o carro para visitar cerros e funiculares.



Valparaíso é muito colorida e com uma organização caótica - a cidade tem os eléctricos mais antigos da América Latina - e casas encavalitadas umas nas outras por todo o lado. A visita a Valparaíso é feita meia à pressa. La Sebastiana, a segunda casa de Neruda, oferece uma vista brutal sobre a cidade e o mar - e umas belas fotografias, mas é a menos engraçada das três casas, a nível de estrutura. Apesar da mesma estrutura de construção - também imita um barco - a visita com audioguia não tem metade da graça de uma visita feita por um guia. Ficam muitas perguntas no ar e a vontade de voltar à cidade que é Património da Humanidade sem tratar dela própria. Dia seguinte, rumo ao Norte do Chile.