domingo, 18 de agosto de 2013

a morte é longa de mais.

Ela sorri quando ouve falar dele, como se o orgulho se baralhasse com as saudades e tudo fosse como se nada fosse. Leve, sem sentir a falta. Leve, sem pontuação. A verdade é que ela, Pilar, anda a falar dele, Saramago, pelo mundo. Anda a falar dele, escritor. Não dele, homem. Seu homem. Porque quando ela fala do homem, José, já não sorri como antes, nem os seus olhos se iluminam, como há pouco. Quando ela fala do homem, José, baixa a cabeça, os olhos tristes das saudades, um lenço tirado às escondidas da carteira, preta, como o saia casaco, preto, como os sapatos, pretos. Ali, só as pérolas ao pescoço sobressaem no luto de há três anos - que a nós nos parece que foram menos -, e ela não nega. As pérolas e a pergunta que lhe fazem, do fundo da sala. "Quando percebeu que se apaixonou por José?". Ela sorri e responde: "E vou dizer-te a ti?". Porque ela veio falar do Saramago - não do José - apesar de para nós o Saramago ser o José e de o José ser o Saramago. Só que quando ela fala de José há por ali a sensação do irremediável, do que não tem solução. "Depois da morte não há diálogo, não. Depois da morte não há nada. A morte é longa de mais.", disse na conferência de homenagem ao escritor - e ao homem - em Buenos Aires.

Para ela - por ela - o homem confundiu-se com o escritor e são os dois o mesmo. Quem nos fez crer isso foi Miguel Gonçalves, o contador da história. Quatro anos e 240 horas filmadas depois - com uma promessa de que ficaria uma semana naquela casa deles de Lanzarote, naquela rotina dele das torradas e da água fervida ao pequeno-almoço, naquele olhar dela desconfiado (entre queixas de cabos espalhados pela sala, entre refilanços de curiosidade a mais pelo homem e a menos pelo escritor). Miguel Gonçalves meteu-se na rotina deles, assistiu ao segundo casamento deles, fez parte da rotina deles. Fez um trabalho exemplar de recolha de material [que agora faz parte do espólio da Fundação José Saramago] e, sobretudo - me parece - um trabalho exemplar no processo de tornar-se parte de uma rotina. Parece-me também que só o conseguiu porque sabia exactamente o que queria, como queria, e de que maneira queria.
No fim, José Saramago - o homem e o escritor - elogiou-lhe o trabalho. Disse Miguel, em Buenos Aires [onde esteve na semana passada a propósito da homenagem da cidade ao escritor português], que José, o homem, e Saramago, o escritor - o retratado - lhe disse que José e Pilar - o documentário - era, mais do que um retrato, uma declaração de amor do homem, José, à mulher, Pilar.

Imagem do livro "Talvez o mundo não seja pequeno", de Virgilio Neto.

[O realizador português Miguel Gonçalves vive em S. Paulo. Está neste momento a gravar o documentário "O sentido da vida" que conta com a participação de Julian Assange, entre outros. Até 2015 deverá gravar "Evangelho segundo Jesus Cristo", obra adaptada do livro de José Saramago com o mesmo nome e cujos direitos pertencem ao realizador.]

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