terça-feira, 15 de abril de 2014

Atlântico - Pacífico em dez dias #3

Do Salar a Potosí



Ainda o dia não nasceu e nós já fizemos um vidão. A expressão aparece logo nesta terceira manhã de viagem, bem longe das camas confortáveis, dos banhos quentes e demorados e dos bancos de carro tranquilos e sem sobressaltos. Acordamos no deserto com baixas temperaturas e antes do sol nascer. Ajudo o Pedro a carregar as mochilas, a botija de gás, os pratos, os copos e os talheres. Depois, entro no jipe. A música, mais baixa do que no dia anterior, não varia muito no género. São cinco da manhã, é noite escura e nós começamos o caminho sem estrada rumo ao Salar, o deserto do sal na Bolívia. Não há estrada nem sequer placas que indicam o caminho. O Pedro faz o percurso de cor, às vezes orientado pelas marcas de pneus no chão (pensamos nós), outras vezes acreditamos que só mesmo por instinto. As estrelas ajudam. Mas o que ajuda mesmo é a sombra da montanha, do lado direito. Mantendo a cordilheira sempre desse lado do carro, chegaremos, garante. Numa hora, o céu começa a ficar mais claro. Primeiro, azul, depois um tom acima, por fim um lilás clarinho. É com essa cor que paramos a primeira vez, já os favos de mel estão reflectidos no chão de sal, os pneus do carro a fazer crrc de cada vez que andamos um bocadinho mais. Uma paisagem nunca vista, a sensação de eterna novidade do mundo de que falava Caeiro, a vontade de eternizar todos os segundos em fotografias que, no fim, nunca fazem jus àquilo que sentimos quanto mais à paisagem que não dá para explicar, "só vendo". 

Um pouco mais à frente, voltamos a parar com medo de perder o nascer do sol no meio da pressa de chegar. O vulcão, do lado direito, compõe a paisagem perfeita: o branco do chão, o azul do céu, a perfeita conjugação entre os dois. E mais: os jipes que parecem seguir estradas próprias, os turistas a fazerem disparar as máquinas indiscriminadamente em poses parvas, uma música brasileira encontrada ao acaso na playlist boliviana de cumbia e reggaeton que nos faz dançar até ao fim como se fosse a ultima e a mais importante das vezes. 

Ali, no deserto, é fácil os olhos perderem-se sem medo de se fecharem. A paisagem é tão bonita e infinita que nem dá medo perdê-la: depois de lá ter estado sei que é impossível esquecer e tenho a certeza que, se fechar os olhos - mesmo que do outro lado do mundo - vou ser capaz de ver tudo outra vez. 

E quando pensamos que já não podemos ver nada mais bonito, quando o sol faz arder os olhos de tão clara que é a paisagem, metemo-nos no jipe e chegamos à ilha dos pescadores. No meio do sal, no meio do nada, há uma ilha que, além de ser no meio de um deserto só tem... Cactos. Sim, leram bem. E logo, quando nós damos conta disso tudo, pensamos no quando é inusitado, inesperado e até sem sentido que exista um deserto feito do de sal, uma superfície gigante de mais de 12 mil metros quadrados sem vida senão as centenas de jipes que transportam milhares de turistas todos os dias. E que, além desse deserto, há uma ilha no meio dele que só tem cactos. E que é nessa estranheza que se armazena a memória mais forte e mais presente que vai reforçar a sensação de que, mesmo de olhos fechados, eu estou lá outra vez sempre que assim queira. 

Na ilha para-se, contempla-se, fotografa-se e toma-se o pequeno almoço. Depois, sem pressas, abrimos a tequilla comprada de véspera e formamos um semi círculo de mãos e copos. Aproveitamos o sal de Uyuni e pomo-lo na mão, numa espécie de aperitivo só completo com uma rodela de limão. Do brinde, voltamos ao carro, do carro ao Salar sem estrada mas com caminho, do Salar à aldeia, a uma cada feita de sal onde se almoça enquanto se ouve cumbia. 

É só depois do almoço que entramos no jipe a caminho de Uyuni, àquela rua principal do dia anterior, bem em cima da hora para apanhar o autocarro para Potosí, a cidade mais alta do mundo. 
À primeira vista, o autocarro é velho mas normal. Só que é logo na subida dos degraus que as pessoas se começam a empurrar e a tentar passar à nossa frente. E aí percebemos que se calhar a coisa não é bem aquilo que nos parecia. Sentadas, de lugares marcados, temos gente sentada no corredor ao nosso lado. Uma senhora, saia colorida, camisola quente, larga o pano colorido que tinha às costas e senta-se, meio apoiada nos apoios de braços do meu banco, pousa o pano no colo e, uma a uma, vai tirando uvas do regaço, come-as e cospe as pevides para o chão. Descansa e repete sem parar, durante umas duas horas, até sair do autocarro.  

Quando ela finalmente sai, é o rapaz do banco do outro lado do corredor que ganha protagonismo. Os cantos da boca verdes da coca mastigada e cuspida por causa da altitude ou do álcool a mais. Mal pode falar, arrasta a voz sempre interrompido pela filha, uma menina de calças azuis às bolinhas que, um pouco depois, acaba por fazer xixi ao colo da mãe. Inquieto, o pai não descansa enquanto não muda de lugar duas ou três vezes, cansado da mesma posição ou da viagem longa. É que, ao mesmo tempo, há um autocarro velho que pára a cada dez minutos, numa estranheza que rapidamente vira monotonia. Não me lembro quantas foram ao certo mas já eram muitas paragens. Demasiadas. O autocarro pára outra vez e nós saltamos. Saímos. Descemos no meio da subida. Depois de dois ou três berros a um dos condutores do autocarro, lá nós deixaram tirar as mochilas da bagageira. O tempo foi o suficiente para conseguirmos boleia. Num instante estávamos a subir para uma carrinha de caixa aberta. Nós e uma dezena de bolivianos, entre graúdos e bebés, um vê se te avias para ainda chegar de dia a Potosí, a tempo de um banho e do autocarro para La Paz. A conversa de capital virá depois. Por agora, a lembrança da paisagem sem filtros e sem vidros. Chegar a Potosí ao fim da tarde e com a vista desarmada tem o efeito de um pôr do sol de verão, daqueles que se prolongam para lá da claridade do dia. 



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