quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

dois-mil-e-catorze.

Como é faço para recordar um ano inteiro?
Lembrar que há um ano estava aqui também, no mesmo sofá, a escrever sobre o ano anterior. Com viagem marcada de regresso a Buenos Aires [ai, Buenos Aires meu amor]. Mas que esse era o único plano para o ano novo. Bem, pensando bem não era o único mas era a única coisa certa.
Viagem feita, foi tempo de escrever para o dia em espanhol. Buenos Aires brasa, tanto calor quanta humidade, cabelo a colar na pele, roupa a colar na pele, latina-américa colada na pele para sempre. Dois-mil-e-catorze foi ano de fazer muitas contas e muitas malas: mochila aviada para a Salta que, em dez dias, correu Bolívia e Peru para terminar em Lima e seguir para Miami numa onda de Chicas Poderosas que não pára nunca. Voltar a Buenos Aires a correr só para pegar nas malas e seguir para Lisboa. Lembrar vagamente o ritmo frenético que me tranquilizou a vida daquela a que muitos chamam a Paris da América Latina porque o regresso a Lisboa trouxe o regresso às noites mais pequenas, aos dias que nunca acabam e ao amor que nunca deixou de ser. Medo de perder coisas, tanto que perco-me a mim às vezes entre emails e telefonemas e compromissos e caracteres, tantos tantos caracteres. Agosto com três dias de semi-férias, sempre de computador atrás. Setembro de recomeços sérios, de tentar fazer as pazes com o meu corpo: começar a correr, comer melhor. Novos desafios, Outubro de regresso à redacção, aos meus #fazedores. Novembro louco, Dezembro nem dei por ele.

Ano Novo, dá-me tantas coisas boas como me deu o ano velho. Foi tão bom que, se assim não for, vai deixar saudades.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

segunda-feira, 16 de junho de 2014

a bússola, o norte e a casa.

E agora uma pergunta para os da casa: para onde é que é o Norte?

Interrompi. O António estava lá em casa há dois dias quando escrevi este texto (e já nem eu lá estou). Conhecia o Chico que vivia connosco até ao mês passado - altura em que se mudou para o Rio de Janeiro, onde o António também viveu um ano e meio. Os amigos desencontrados despediram-se no Rio em vésperas da partida do António para se reencontrarem nas conversas sobre o Chico, aqui em casa.

O Chico já não vivia lá mas continuava a estar presente em muitas conversas. E naquele dia, quando o António me mostrou os Tumblrs que tem e alimenta com ilustrações e fotografias, falámos dele. Nenhum de nós conhecia o António mas é como se, através dele, o Chico estivesse cá por momentos, outra vez.

Mas voltemos à pergunta. Apontei com a cabeça para trás de mim. O norte está atrás de mim, nas traseiras do prédio, do lado dos quartos em nossa casa. Nesta altura, ele ainda estava a tentar equilibrar a bússola.

Andas de bússola? - perguntei.
Preciso, para saber onde é o Norte. - respondeu.

Ilustração: Ó Patagónia


O António foi a visita mais recente a chegar lá a casa, recém-saído do Rio (entretanto passou por Iguaçu). Vai andar a viajar durante o tempo que o dinheiro que juntou sobreviver. Antes, chegou o Eduardo, a viajar há nove meses pela América latina. Trouxe histórias de todos os lados, ainda falava com o entusiasmo de quem revive todos os dias a viagem de canoa pela Amazónia, brilhavam-lhe os olhos, só queria que vissem. Andava de mochila às costas de passeio em passeio, já um bocadinho cansado de autocarros e de viagens com duração de mais de um dígito de horas, já com necessidade de comprar um par de ténis novo que o outro, abandonou-o no poiso anterior.

Também eu abandonei um par de ténis algures no hostel em Cuzco, uma das últimas paragens antes de chegarmos a Lima, quase quase no fim da viagem. Também eu andei de mochila às costas, a carregar o peso que me propus meter às costas com a sensação de liberdade que vem agarrada a bilhetes escritos à mão com lugares marcados entre bolivianos sentados no chão e boleias apanhadas no meio da estrada.

Agora, de volta a casa, quero voltar a encher os quartos com fotografias de viagens nas paredes, que farão companhia às frases bonitas escritas com letras modernas mas que nunca se compararão àquilo que é andarmos de mochila às costas pelo mundo, com uma bússola que vive do batimento cardíaco. 

sábado, 10 de maio de 2014

escrever para mim.

Nova pausa no relato da viagem - e mais uma para pensar neste recente regresso a casa - para suspirar. Há um ano descobri este site onde podemos escrever um email ao futuro. Sim, isso mesmo, escrevi-me uma carta datada de cinco de maio e recebi-a um ano depois. O bom disto é que, como foi há um ano e não exige follow, esqueci-me completamente. Ora, andava eu a tentar pôr em ordem as duas malas por desfazer que ainda me desfazem de nervos quando, sem contar, recebi um email meu. Falava-me eu de ter mudado de casa, de vida, de país. E de como isso, apesar de difícil, era tão necessário (para mim). Que bem que me soube. Tanto mas tanto - e a sensação de que era mesmo aquilo e do quanto valeu a pena - que vou agora mesmo escrever outro email para o futuro. O encontro está marcado para o ano que vem. Oh yeah. 


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Atlântico - Pacífico em dez dias #4

Da cidade mais alta do mundo à capital mais atordoante


Chegámos. Descemos da carrinha em plena rotunda latino-americana. Há carros a apitar, autocarros atarefados, o sol quase a pôr-se naquele fim de tarde e nós a descarregar a caixa aberta. Ajudamo-nos umas às outras a descer, as mochilas carregadas, as mantas, os casacos, as mochilas mais leves, o saco de plástico preto com a garrafa de tequilla e ainda outra de vinho tinto. O monte de mochilas no chão, as mãos à cabeça, depois para a frente a tentar mandar parar dois táxis que nós levassem e às tralhas. Sem marcação de dormida mas com o nome de um hostel na cabeça, subimos a cidade em quinze minutos e chegámos a um hostel com pátio ao ar livre. A casa, pintada de amarelo, fica bem ao lado da praça central que nem tivemos tempo de conhecer. Do que vimos nos guias, Potosí merece visita às minas e às dezenas de igrejas que acumula em ruas e vielas inclinadas. O autocarro para La Paz sai duas horas e meia depois horas e somos cinco para tomar banho, vestir e actualizar fotografias e mensagens no facebook, no instagram e no whatsaap. Por isso, à nossa chegada, o taxi ficou marcado para daí a duas horas, sem nunca prevermos a experiência que seria chegar aquele terminal gigante e circular.

Em todos países da América latina onde já fui há uma grande estratégia de vendas cara a cara. Isto é, mal chegamos a um aeroporto, terminal de autocarros ou de comboios, logo vêm entre uma a duas males cheias de taxistas e todo o tipo de comerciais de outros transportes para nos venderem a preços normalmente inflacionados os trajectos que nós precisamos de fazer. Primeiro conselho: negociar. É possível regatear preços, seja na Argentina como na Bolívia ou no Perú. O terminal redondo de Potosí, que fica na parte baixa da cidade, está rodeado de roulotes e povoado de vendedores ambulantes. À chegada do taxi, e ainda sem pagarmos o serviço, somos quase abalroadas por vencedores. De Potosí, segundo eles, há viagens para todas as partes do país (é incrível a variedade de destinos e de serviços que os autocarros sul-americanos são capazes de prometer). 
Entramos de fugida, já as malas pesas mais uns quilos (não que tenhamos comprado coisas mas porque as costas já acusam cansaço). 

Não me lembro bem da cor do terminal porque tenho a sensação que as luzes eram tão brancas que nem dava para ver. Talvez fosse de cimento, com o tecto arredondado topo cúpula. No centro, com passagem por uma ponte, um restaurante com mesas cinzentas e balcão cor de vinho que fazia lembrar os mais recônditos restaurantes chineses de Lisboa. Comi uma canja, para aquecer e aguentar a viagem de uma noite inteirinha (umas dez horas) até La Paz, a capital. No balcão de entrega dos bilhetes, um homem careca pesa as malas vagarosamente, como de tivesse todo o tempo do mundo enquanto um cão branco a mudar de pelo dorme e impede a entrada no espaço que vai da parede ao balcão. Não é o junco a viver no terminal. Antes de entrarmos no autocarro compramos dois pacotes de bolachas e três chocolates numa senhora que montou banca mesmo na plataforma onde os autocarros esperam pelos passageiros (ou o contrário). Sentado-nos mas a confusão do autocarro cheio não nos deixa dormir. Tinham-nos alertado para o frio dos autocarros durante a noite mas disso não temos de que nos queixar. Antes do inverso: passámos muito calor a viajar durante a noite na Bolívia e no Perú. 


Quando chegamos a La Paz ainda é cedo mas já é de manhã. As minhas dores de cabeça por causa da altitude começam a aumentar, sente-se um peso na testa e uma dor fina mas chata ao pé dos olhos. A cena no terminal repete-se: dezenas de taxistas gritam e oferecem serviços até ao centro. À primeira vista La Paz tem o aspecto de uma favela gigante: as casa por pintar ficam todas da cor de tijolo muitas vezes sem reboco e as únicas cores que têm normalmente são bandeirantes de papel brilhante e prateado que os moradores penduram junto ao telhado. Chegadas ao hostel que tínhamos marcado ficamos a saber que afinal não havia lugar e temos que procurar outro. Mais uma vez, os taxistas oferecem-se para procurar ajuda e o nosso tem até um panfleto de hotel já meio amachucado. Encontramos um hostel numa a zona central sem grande dificuldade. Ficamos mesmo na entrada do mercado das bruxas, o melhor sítio para comprar tapeçaria e artesanato boliviano no centro da cidade. Pousamos as malas, actualizamos conversa, avisamos que chegámos e saímos para tomar pequeno almoço reforçado já com a certeza de que a seguir não podemos escapar a um chá de coca e a uma ida à farmácia para comprar os tão úteis comprimidos contra a altitude. A ver vamos. 

terça-feira, 15 de abril de 2014

Atlântico - Pacífico em dez dias #3

Do Salar a Potosí



Ainda o dia não nasceu e nós já fizemos um vidão. A expressão aparece logo nesta terceira manhã de viagem, bem longe das camas confortáveis, dos banhos quentes e demorados e dos bancos de carro tranquilos e sem sobressaltos. Acordamos no deserto com baixas temperaturas e antes do sol nascer. Ajudo o Pedro a carregar as mochilas, a botija de gás, os pratos, os copos e os talheres. Depois, entro no jipe. A música, mais baixa do que no dia anterior, não varia muito no género. São cinco da manhã, é noite escura e nós começamos o caminho sem estrada rumo ao Salar, o deserto do sal na Bolívia. Não há estrada nem sequer placas que indicam o caminho. O Pedro faz o percurso de cor, às vezes orientado pelas marcas de pneus no chão (pensamos nós), outras vezes acreditamos que só mesmo por instinto. As estrelas ajudam. Mas o que ajuda mesmo é a sombra da montanha, do lado direito. Mantendo a cordilheira sempre desse lado do carro, chegaremos, garante. Numa hora, o céu começa a ficar mais claro. Primeiro, azul, depois um tom acima, por fim um lilás clarinho. É com essa cor que paramos a primeira vez, já os favos de mel estão reflectidos no chão de sal, os pneus do carro a fazer crrc de cada vez que andamos um bocadinho mais. Uma paisagem nunca vista, a sensação de eterna novidade do mundo de que falava Caeiro, a vontade de eternizar todos os segundos em fotografias que, no fim, nunca fazem jus àquilo que sentimos quanto mais à paisagem que não dá para explicar, "só vendo". 

Um pouco mais à frente, voltamos a parar com medo de perder o nascer do sol no meio da pressa de chegar. O vulcão, do lado direito, compõe a paisagem perfeita: o branco do chão, o azul do céu, a perfeita conjugação entre os dois. E mais: os jipes que parecem seguir estradas próprias, os turistas a fazerem disparar as máquinas indiscriminadamente em poses parvas, uma música brasileira encontrada ao acaso na playlist boliviana de cumbia e reggaeton que nos faz dançar até ao fim como se fosse a ultima e a mais importante das vezes. 

Ali, no deserto, é fácil os olhos perderem-se sem medo de se fecharem. A paisagem é tão bonita e infinita que nem dá medo perdê-la: depois de lá ter estado sei que é impossível esquecer e tenho a certeza que, se fechar os olhos - mesmo que do outro lado do mundo - vou ser capaz de ver tudo outra vez. 

E quando pensamos que já não podemos ver nada mais bonito, quando o sol faz arder os olhos de tão clara que é a paisagem, metemo-nos no jipe e chegamos à ilha dos pescadores. No meio do sal, no meio do nada, há uma ilha que, além de ser no meio de um deserto só tem... Cactos. Sim, leram bem. E logo, quando nós damos conta disso tudo, pensamos no quando é inusitado, inesperado e até sem sentido que exista um deserto feito do de sal, uma superfície gigante de mais de 12 mil metros quadrados sem vida senão as centenas de jipes que transportam milhares de turistas todos os dias. E que, além desse deserto, há uma ilha no meio dele que só tem cactos. E que é nessa estranheza que se armazena a memória mais forte e mais presente que vai reforçar a sensação de que, mesmo de olhos fechados, eu estou lá outra vez sempre que assim queira. 

Na ilha para-se, contempla-se, fotografa-se e toma-se o pequeno almoço. Depois, sem pressas, abrimos a tequilla comprada de véspera e formamos um semi círculo de mãos e copos. Aproveitamos o sal de Uyuni e pomo-lo na mão, numa espécie de aperitivo só completo com uma rodela de limão. Do brinde, voltamos ao carro, do carro ao Salar sem estrada mas com caminho, do Salar à aldeia, a uma cada feita de sal onde se almoça enquanto se ouve cumbia. 

É só depois do almoço que entramos no jipe a caminho de Uyuni, àquela rua principal do dia anterior, bem em cima da hora para apanhar o autocarro para Potosí, a cidade mais alta do mundo. 
À primeira vista, o autocarro é velho mas normal. Só que é logo na subida dos degraus que as pessoas se começam a empurrar e a tentar passar à nossa frente. E aí percebemos que se calhar a coisa não é bem aquilo que nos parecia. Sentadas, de lugares marcados, temos gente sentada no corredor ao nosso lado. Uma senhora, saia colorida, camisola quente, larga o pano colorido que tinha às costas e senta-se, meio apoiada nos apoios de braços do meu banco, pousa o pano no colo e, uma a uma, vai tirando uvas do regaço, come-as e cospe as pevides para o chão. Descansa e repete sem parar, durante umas duas horas, até sair do autocarro.  

Quando ela finalmente sai, é o rapaz do banco do outro lado do corredor que ganha protagonismo. Os cantos da boca verdes da coca mastigada e cuspida por causa da altitude ou do álcool a mais. Mal pode falar, arrasta a voz sempre interrompido pela filha, uma menina de calças azuis às bolinhas que, um pouco depois, acaba por fazer xixi ao colo da mãe. Inquieto, o pai não descansa enquanto não muda de lugar duas ou três vezes, cansado da mesma posição ou da viagem longa. É que, ao mesmo tempo, há um autocarro velho que pára a cada dez minutos, numa estranheza que rapidamente vira monotonia. Não me lembro quantas foram ao certo mas já eram muitas paragens. Demasiadas. O autocarro pára outra vez e nós saltamos. Saímos. Descemos no meio da subida. Depois de dois ou três berros a um dos condutores do autocarro, lá nós deixaram tirar as mochilas da bagageira. O tempo foi o suficiente para conseguirmos boleia. Num instante estávamos a subir para uma carrinha de caixa aberta. Nós e uma dezena de bolivianos, entre graúdos e bebés, um vê se te avias para ainda chegar de dia a Potosí, a tempo de um banho e do autocarro para La Paz. A conversa de capital virá depois. Por agora, a lembrança da paisagem sem filtros e sem vidros. Chegar a Potosí ao fim da tarde e com a vista desarmada tem o efeito de um pôr do sol de verão, daqueles que se prolongam para lá da claridade do dia. 



segunda-feira, 14 de abril de 2014

Atlântico - Pacífico em dez dias #2

Chegar a Uyuni



O jipe está carregado. No tejadilho, seguras por um enorme plástico cor de laranja e vários cabos, vão as nossas mochilas, uma botija de gás e a bagagem do Pedro e da Susana (o motorista e guia e a cozinheira que o acompanha). Na mala do carro, copos, pratos e talheres e a comida para esse dia e o dia seguinte. Ao nosso lado, três garrafas de vinho e uma de tequilla metidas num saco preto e compradas segundo recomendação do Freddie na loja da mãe do próprio. Sentadas no jipe, perguntam-nos se temos preferência na banda sonora. Dizemos que não. E essa é a primeira má decisão de toda a viagem. 
Depois de partimos ainda passamos por casa do Pedro para ir buscar ovos e alguns legumes frescos. É a mulher do Pedro que constrói e cozinha os menus que depois a Susana termina. O percurso inclui umas seis horas de caminho com paisagem de montanhas coloridas até chegarmos a Uyuni, onde vamos dormir, e depois a visita ao Salar onde almoçamos. O percurso acaba aí mesmo na cidade, para depois seguirmos viagem para norte. No caminho, vamos vendo o dia avançando pela cor do céu mas é o vermelho, o branco, o ocre e até o azul claro das montanhas que mais me fascina em todo o percurso. A paisagem, ora seca e árida colorida com cores de cacto, ora azul do céu e verde na terra, vai arrancando suspiros, intercalados com outros de quem já não vai suportando ouvir mais cumbia e regaeton. Os ouvidos educam-se e buenos aires, neste aspecto, já me deu um avanço catita. Mas para elas, coabitar com a batida caribenha é mais difícil. E, enquanto eu vou cantando um "mentiroso, corazon mentiroso" de mansinho, elas suspiram alto como quem já não aguenta nem mais um acorde. 
E é entre paisagens de lamas e vicuñas de brincos cor-de-rosa, montanhas de cores inesperadas e um sem número de saltos inusitados dentro do jipe que chegamos a Uyuni. À nossa chegada, a visão de uma cidade que parece de filme. Um vento louco que levanta o pó branco do chão e cobre a cidade de areia que, à primeira paragem, nos deixa uma camada meia branca no cabelo e irrita os olhos. De fugida, fotografamos o cemitério dos comboios, a cinco minutos da rua principal da cidade. Há carruagens enferrujadas pelo tempo e pela falta de cuidado, num ferro-velho improvisado que virou atração turística. É fim da tarde mas o movimento continua. Reservados os bilhetes para o dia seguinte, vemos o pôr do sol do vidro do carro e tentamos registá-lo com tanta concentração como a que usamos para equilibrar as garrafas de água e os telemóveis nas mãos, enquanto o Pedro insiste em ser racer na estrada de terra batida. À chegada à casa onde vamos ficar, o antigo museu de sal parece abandonado. Não há água quente e, como essa água nos tinha sido prometida, exigimos mudar. Chapa gasta, chapa ganha. Mudamos. Trocas de botijas de gás, descarregar o tejadilho do jipe, um banho quente e uma corrida da casa de banho à casa onde ficamos. Quarto quente, muitos cobertores de lã de lama em cima da cama de colchão de palha e um cenário que mais parece um abrigo de talibãs, como bem referiu a Isabel. E depois, a mesa posta e uma sopa quente para aquecer as cabeças. No dia seguinte, o despertador toca cedo para corrermos para o deserto do sal a tempo do nascer do sol. 




quarta-feira, 9 de abril de 2014

Atlântico - Pacífico em dez dias #1


De Buenos Aires a Tupiza


"Where are we now?" A pergunta aparece meia disfarçada entre dois olhos remelosos depois de uma noite mal dormida num autocarro de temperaturas tropicais. Chegámos a La Quiaca, fronteira norte da argentina que liga o país à Bolívia, às sete da manhã, vindas de Salta, La Linda. De Buenos Aires a Salta demorámos uma larga noite de 20 horas, entre bebidas e comidas quentes servidas tipo avião. Viríamos a descobrir depois, os autocarros argentinos são os melhores (e também os mais caros) para viajar na América no Sul.  Do terminal de Salta dá para ir a caminhar até ao centro da cidade. Uma muda de roupa na mochila mais pequena e procuramos um hostel barato só para tomar um banho e refrescar o corpo para mais uma viagem de uma noite. 
Chegar a La Quiaca é perceber uma realidade diferente. No edifício do terminal, uma casa improvisada com um corredor comprido onde gente dorme encostada à parede e embrulhada a sacos-cama e cobertores, está um frio de rachar antes de o dia nascer. Chegamos para o nascer do sol: em La Quiaca, termina o serviço do autocarro. Há que sair, pegar nas mochilas e andar uns 15 minutos a pé até à fronteira com Villazon, a cidade equivalente mas do lado da Bolívia. Na fronteira, uma fila que só os bolivianos passam à frente. Mulheres de panos coloridos às costas começam a passar do imaginário que vinha na cabeça à realidade mesmo à nossa frente. 
Do lado de lá, já com os passaportes carimbados por 60 dias, procuramos transporte para Tupiza, cidade intermédia entre a fronteira e Uyuni, o nosso próximo destino. Chegamos a acordo com um taxista de Tarija, Hugo, que se mudou para Villazon por amor ainda que continue a achar Tarija a cidade mais bonita da Bolívia. Uma hora e meia depois (menos três horas do que demoraríamos se tivéssemos optado pelo autocarro) deixa-nos na estação de comboios. Esticado de caneta na mão, um homem olha de lado quando nos vê passar o arco da entrada. Sem que tenhamos feito qualquer pergunta, avisa: hoje não há comboios para onde quer que seja. 
Pegamos nas mochilas e procuramos sítio para comer. Os cafés são raros, ainda mais se essa for a bebida que queremos tomar. Depois de voltas pelo centro da cidade, entramos no mercado. E é entre as mulheres de saias coloridas que vendem comida e nunca param de comer que decidimos o próximo trajecto, entre um pastel de queijo dividido por todas d canecas generosamente cheias de café acabado de passar.
No caminho para o terminal de autocarros, encontramos a empresa do Freddie, boliviano que faz excursões de Tupiza para Uyuni. É lá que negociamos o preço e o programa dos próximos dois dias e uma noite. Na hora e meia seguinte confirmei que o mundo é uma ervilha - o Freddie tem uma irmã e o sobrinho a viver em Portugal - e pude perceber que ele será provavelmente o grande empresário e dono de metade de Tupiza: além da agência de excursões, aconselha os cafés no botequim da irmã, do outro lado da estrada, e as compras para os dias de viagem na mercearia da mãe, Helena, mesmo ao lado do escritório. Um verdadeiro negócio vertical. 




terça-feira, 8 de abril de 2014

buenos sábados #45

fazer contas e começar o dia com uma hora de diferença de buenos aires e cinco de Lisboa. acordar numa cama de colchão duro e três cobertores, em pleno deserto de sal, antes de o sol nascer, para ver o sol nascer. não se vê nada naquela casa feita de tijolos de sal, a noite escura só deixa adivinhar o que vimos no dia anterior, uma pequena aldeia no meio da Bolívia que recebe milhares de turistas por ano mas que nem por isso está preparada para receber. lembrar a chegada na noite anterior, horas e horas em autocarros, travessia de fronteira a pé, mais um taxi e câmbio, meia dúzia de cafés com cara de água suja. lembrar a vontade de um banho quente naquela casa de banho alagada e até aí, sem água morna. o esforço do dono da casa para arranjar banho quente naquela casa aquecida de sal. madrugada gelada acima, o dia a nascer a cada quilômetro de jipe. o barulho do sal em pressão contra os pneus, a paragem para as fotografias, o nascer do sol no sítio mais bonito que eu já vi. a paisagem sem fim, mesmo sem fim. as fotografias que não fazem justiça ao sítio, uma representação muito aquém daquilo que os olhos vêem e que a cabeça quer reter para sempre. e a certeza de que viajar vale sempre a pena e de que vale também conseguirmos deixar bocadinhos de nós nos sítios onde passamos e, ao mesmo tempo, deixarmos espaço vago para reter a energia que entretanto se acumula. o branco do sal no chão, a paisagem que não dá para descrever, a recomendação de que só indo para saber o que é - e mesmo assim, nem eu sei - o azul do céu, aquele azul do céu que impede o pestanejar que tão lindo que é. e depois aquela ilha, no meio de tanto sal, de um sal que não acaba, uma ilha de cactos, alinhados, desalinhados, só cactos. e ainda a paisagem no coração, na cabeça, e à minha frente sempre que os olhos de fecham. 
o regresso de jipe e o autocarro para Potosí, a cidade mais alta do mundo. partir de autocarro e chegar de carrinha de caixa aberta, que subir até cima não é pêra doce e os autocarros bolivianos resistem mas tardam. outra imagem na cabeça: os berros para nós deixarem tirar as malas da bagageira, a corrida até à carrinha, a subida. puxar malas, miúdos, senhoras. acomodar tudo em cima e a paisagem sem filtro e sem vidro, fotografada directamente da caixa aberta. as caras das pessoas surpreendidas com o nosso entusiasmo. a cidade alta, brilhante, antiga exploração de ouro, agora sem tanta riqueza. as casas inacabadas, cor de tijolo, sem janelas nem pintura. chegar e ir outra vez. nunca os sábados foram tão divertidos em viagem. este sábado, fora de buenos, ainda na minha latinamérica. 


quinta-feira, 3 de abril de 2014

buenos sábados #44


sábado de casa. sábado de pequeno-almoço no quarto - que a sala continua a ser quarto de visitas. sábado de entrevistas - uma fazedora que quando fala no negócio fala de inspiração na cabeça e no coração. sábado de desgravar entrevistas, de tentar entender a letra corrida das conversas por skype, sábado de pressas para acabar trabalho porque já se sonha com a viagem que aí vem. sábado de manhã em casa e de tarde no mesmo sítio. sábado bom, o penúltimo, em buenos aires. [pelo menos desta série de sábados buenos]

terça-feira, 25 de março de 2014

buenos sábados #43


olhar para trás é uma maneira boa de viver tudo outra vez. a memória tende a relativizar as más experiências, a guardar as boas sensações e a lembrar aquilo que me fez sentir bem, mais do que aquilo que me irritou ou me fez chorar. e, como o tempo corre, ainda sobra menos tempo para pensar nisso tudo outra vez. os dias caminham a passos largos para o regresso e isso faz com que esta casa tenha, por cá, os dias contados. por isso, quero guardar o cheiro bom das pastelarias das mediaslunas e dos passeios ao fim da tarde, mate às costas, pelos bosques de Palermo. insisto em manter as sapatilhas por lavar e em não pensar em malas até ao dia em que tenho mesmo que as fazer. e depois, voltar aos jardins e sentar-me numa manta sem pressas, agora que a tese está entregue, agora que - só - preciso de trabalhar mais para deixar tudo pronto até ao regresso. eu quero manter esta sensação de surpresa do primeiro dia e observo sem perceber que mesmo as coisas que já são rotina mantêm o encanto da primeira vez. essa sensação que não sei explicar melhor do que isto: sinto-me em casa ainda que me sinta fora de casa. e vice-versa. dá para perceber? e depois leio, nesta casa-jardim a um mero passeio a pé de casa. deito-me na relva, deixo-me aquecer pelo sol e permito-me fazer parte desta poesia. os sábados em Lisboa são bonitos - que bem me lembro. mas os sábados em Buenos Aires não ficam atrás. buenos sábados, estes, os quarenta e três. 

terça-feira, 18 de março de 2014

buenos sábados #42


saber que mesmo que este sábado quarenta e dois dê as voltas que possa dar - e mais algumas - ele vai invariavelmente passar por um grande avanço da tese. escrever sábado quando a cabeça já vem a pensar o que escrever desde sexta. minto, desde muito antes, que as entrevistas já começaram em novembro. mais uma entrevista, outras tantas por fazer - que a adrenalina de deixar para o limite sabe quase tão bem como sabê-la bem encaminhada e pronta. depois, fazer contas às horas. saber que, tendo visitas - que bom que houve tanta mas tanta gente a visitar-me aqui - a deadline não permite grandes passeios. ainda assim, organizar para poder sair  e pensar que, mesmo estando sol, há um sol que vai brilhar mais depois da entrega. o tempo não estica, já sei. mas dá vontade de esticar o fim de semana de maneira a que seja mesmo elástico para prolongar os momentos bons e deixar passar - rápido, indolor mas eficaz - o tempo de cabeça e olhos alerta e rabo sentado no sofá. isso e levantar-me, de vez em quando, para olhar outra vez pela janela. empurrar o vidro, olha para o céu, pensar nas coisas e nas pessoas. saber que o sábado bom está em contagem decrescente já, para outros tão bons como ele. 

segunda-feira, 10 de março de 2014

dois dias em Iguazu.

A viagem de dezoito horas de autocarro não custa, juro. Bem, para ser franca, custa muito menos do que uma viagem de quinze horas de avião, a mesma que eu fiz para chegar cá depois do Natal. Ou talvez me tenha custado mais essa no início de Janeiro, porque a vontade de ficar era maior do que a de voltar, mesmo que em Lisboa fosse Inverno e mesmo que cá fosse Verão. A verdade é que, comparado com o espaço que cada passageiro tem num avião, o assento/semi-cama dos autocarros argentinos é um penthouse com direito a comida razoável, a uma temperatura made in ar condicionado que não perturba e a imagens de pôr e de nascer do sol irrepreensíveis.

Por isso, mais do que o espaço apertado da cadeira, custa o trânsito louco de Buenos Aires numa sexta-feira de Verão, que coincide com as viagens de milhares de porteños para as praias mais perto da capital.

Chegar a Iguazu é, desde logo, mergulhar numa floresta cheia. Muito verde, paisagem a lembrar o Alentejo de Primavera ainda que com muitas mais árvores, cheiro a terra e a campo e a gente mais simpática do que na cidade. Depois, é sentir a humidade a entrar pela roupa e a colar-se à pele e a passar para os ossos, e sentir que ela só se vai embora à medida que nós formos também - e se realmente formos também. Puerto Iguazu é, na estrada, depois de El Dorado e de Puerto Esperanza, terras tão prometedoras como desertas. Há pouca gente por lá, poucas casas, pouco movimento. El Dorado tem a rodoviária por onde passa o autocarro já atrasado que termina a rota em Puerto Iguazu e que, talvez por isso, lhe dá ainda menos importância do que podia considerar merecer.



Saem pocos passageiros em El Dorado, e regressa o autocarro de dois andares pela estrada meio molhada da chuva, a outra metade de humidade. Há obras na estrada - como em Buenos Aires, a cada passeio, há obras e muitos homens a trabalhar nelas, ainda que pareçam muitos mais do que os necessários - e, chegados ao terminal, há calor e cheira já a humidade e a água. Esticamos as costas, perguntamos se o hostel fica perto e metemo-nos num táxi por 50 pesos, quase cinco euros para fazer cinco quilómetros até ao quilómetro 5 da estrada que leva os milhares de turistas que visitam diariamente o Parque Nacional de Puerto Iguazu. A piscina pisca o olho mas é preciso fazer contas ao tempo: combinamos com o taxista ruivo e branco de olhos claros que daí a uma hora nos leva ao lado brasileiro do parque. A correr, fazemos o checo-in, trocamos de roupa e de sapatos, lavamos a cara e os dentes e pomo-nos a caminho do espectáculo.

A entrada custa uma pipa de massa (não me lembro bem mas acho que uns 30 euros por pessoa; caro para mim, considerando o preço do hostel, da viagem e de que também do lado argentino teremos que pagar outro tanto) mas basta o caminho de autocarro e a trilha a pé para percebermos que o espectáculo vale a pena. Está calor, há gente a fotografar-se por todo o lado, fotógrafos profissionais a abordarem permanentemente os turistas para lhes tirarem fotografias de braços no ar em frente à catarata. Mas basta fechar os olhos e voltar a abrir para o encantamento começar todo outra vez. 

Ali, passa tudo pela cabeça e desaparece tudo. E, isto tudinho ao mesmo tempo. Há calor, há sol, há água. Há humidade que sobra, há verde de sobra, azul de sobra da água e do mar. A água, mesmo mesmo perto da queda, é água que arrefece sem dar frio, refresca sem perturbar, molha muito sem chatear ou preocupar. Logo seca.

Depois do parque, sentamo-nos na esplanada. Um sumo de ananás que não custa nenhuma fortuna, uma espera calma, uma carga de água que nos países tropicais isso é o mais certo. Apanhamos o autocarro até à entrada e o táxi até ao hostel. Saindo depois do almoço e chegando ao fim da tarde, o dia ainda chega para um mergulho na piscina. A água, morna.






Escolher o lado das cataratas a visitar primeiro é ter em conta, não só as questões de tempo - chegar a meio de um sábado e ter todo o domingo livre -, mas conselhos de quem já lá tinha ido. A maioria das pessoas e dos guias recomenda que a visita ao lado brasileiro seja mais curta do o passeio no lado argentino. Primeiro, porque o primeiro percurso é mais curto. Depois, porque a escolher um seria sempre o segundo. Neste jogo, a Argentina ganha. É incrível ver as cataratas de frente. Mas, mais incrível ainda é estar ao lado delas. É de sonho.

O passeio começa de manhã cedo, mal abre o parque. Essenciais? Garrafa de água e uma muda de roupa na mochila. Além disto, a máquina fotográfica e vontade de andar. Entrar no parque custa cerca de 20 euros - inclui passeio de comboio pelo parque e todos os pontos obrigatórios-, mas fica mais caro se se quiser fazer algum dos percursos que propõe a empresa que há logo depois da entrada. Escolher o percurso de preço médio - o náutico - pareceu-nos o mais sensato. Custou-nos mais 18 euros, mais coisa menos coisa. Além dos caminhos pelas pontes de madeira e de metal, pelo meio da floresta e de combóio, o nosso passeio incluiu uma viagem de barco. Sim, tomámos banho de cascata. Sim, duas vezes. Sim, foi de sonho.

O resto, acho que dá para ver nas fotografias. É incrível existir um sítio assim. Há arco-íris para pedir desejos, borboletas com números nas asas e é impossível tirar más fotografias porque a paisagem é linda de morrer.
E só consigo pensar na sensação do primeiro tipo que lá chegou e se deparou com aquele cenário. Imaginam a loucura? Agora, fechem os olhos. Estar lá, é muito melhor.









P.S.: No fim, há gelados para comer. Recomendo a mistura chocolate amargo e frutilla al água. E uma feirinha básica com artesanato que tem coisas, obviamente, com preços inflacionados. Eu preferi guardar o resto do dinheiro para a próxima viagem. Mas vale a pena dar uma vista de olhos.

P.S.2: Nota para o aeroporto de Puerto Iguazu, mesmo no fim da estrada que passa pelo parque. E, claro, para a vista do avião. Esta paisagem é a que me vai ficar para sempre na memória. 


sábado, 8 de março de 2014

buenos sábados #41


e, depois da ansiedade que antecede a chegada das visitas, depois da novidade dos dias com companhia, depois da vontade de mostrar tudo de todas as maneiras, da falta de tempo para ir a todos os sítios que me têm apaixonado ao longo destes dez meses. agora, depois de lhes dizer onde se comem as melhores empanadas, qual é a melhor maneira de ir para a Boca, de que cor é o céu dos dias de chuva e nos dias de sol, por que rua devem ir para a praça do centro de Palermo porque é a rua das lojas mais bonitas, das casas mais coloridas e dos melhores murais para fotografar. agora, depois de correr entre colectivos para chegar a horas aos encontros, depois de aulas de fugida para oferecer as melhores vistas da cidade, depois de trocar dinheiro nos arbolitos clássicos da Florida e de resistir a algumas das melhores medialunas da cidade só para as servir ao pequeno-almoço das visitas. depois de tratar de transferes, adiantar entrevistas, escrever muitos caracteres e fazer a cama de lavado. eis que chega o momento em que começa a contagem decrescente para o que há-de vir. volta-se ao mercado de manhã, volta-se ao café sem pressa de sábado de manhã, lê-se o jornal sem o comprar, observa-se. entra-se nas últimas semanas aqui. depois, ninguém sabe. e é neste misto de ansiedade e expectativa que vou descrevendo as sensações de quem ainda agora chegou e já se prepara para ir embora. ir, o verbo, é mesmo assim. acção pura, é o que é. mais um sábado, o quarenta e um, aqui. 

terça-feira, 4 de março de 2014

buenos sábados #40


as contas que se fazem quando o número é conta certa ficam adiadas pelas visitas que chegam quase todas as semanas. o descanso em casa, os sábados de não fazer nada e os cafés com livro ao fim da tarde ficam suspensos também, por impedimentos vários. às quarenta, acorda-se cedo para ir trocar dinheiro - e para se ser surpreendido pelo cambio fechado até às duas da tarde por ser fin de semana largo, em comemoração urbana carnavalesca que fez desaparecer metade dos porteños. revisitam-se os pontos turísticos com mais um par de visitas, passeia-se pelas ruas. Buenos Aires é daqueles filmes que vemos vezes sem conta e nunca cansam porque, de cada nova vez descobrem-se novas coisas. este sábado fui à Bombonera, onde nunca tinha entrado. entrei pela primeira vez na Catedral para ver tango a um sábado à noite. repito os sítios mas nunca repito as fotografias. cada vez gosto mais de Instagram e cada vez sigo mais pessoas. já falo da Boca como falo de choripan: conheço os cantos à casa, guio-me pelas ruas sem pestanejar e já não saco do mapa porque tenho o mapa na cabeça. a ver se o tempo não se apressa e me deixa fotografar muito mais nos sábados que restam. mais um, desta vez número redondo. quarenta sábados: nem mais, nem menos.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

troco doce.


Não é possível viver em Buenos Aires sem falar de inflação. Esse é "o" tema sempre falado nos jornais e sempre sentido na pele. Tão normal como ir comer fora e deixar gorjeta, porque ela é quase "um dado adquirido" quando se fala em trabalhar em algum café ou restaurante. Como se do ordenado fizesse parte o contributo que o cliente deixa depois de pagar a conta. 

Pouco a pouco aquilo que nos é estranho - o preço da carne aumentar 20% de uma semana para a outra ou o tomate passar, de um dia ao outro a custar o dobro - vai-se tornando coisa normal (ainda que de cada vez que penso nisto me pareca completamente surreal).

Mas há mais. No Carrefour ao lado de nossa casa é comum pedirem-nos trocos quando pagamos com as maiores notas da Argentina. Pagar com notas de 100 pesos (que valem qualquer coisa como 10 euros) são sempre exercício grande quando se fala de troco. Por isso, quando não temos trocado para fazer conta certa, dão-nos o troco em notas e moedas grandes. O resto vem em rebuçados, estrategicamente colocados, ao lado da caixa. Troco doce, nem se questiona.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

buenos sábados #39



o fim de uma viagem é sempre o princípio de outra, dizem. e é dessa constância que se faz também o descompasso, a mudança. mesmo nas coisas mais práticas e simples. isto para dizer que foi na constância da viagem de autocarro - programada para dezassete mas que demorou mais de dezoito - que se fez a mudança de programa do sábado trinta e nove. mudei a rotina para Iguazu e apaixonei-me. a vista e a força e a sensação de pequenez em relação à paisagem e à criação - que aquilo não pode ser coisa do acaso. o calor e a humidade, o verde e o azul, e depressa o autocarro até ao ponto de encontro chega e somos parte daquilo tudo e é tão bom. do Brasil encara-se a catarata, aquela cascata gigante. e ainda há margem para preparar o domingo no lado argentino que - perdoe-me o brasileiro - mas desta vez ficou com tudo. desforra na semi-final da Copa. [que, na final, sonho connosco]. depois é o regresso a Buenos. mais um sábado bom, de seu nome trinta e nove. vamo qui vamo!

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

caras de Kiev.

São só dez fotografias, aquelas que o Huffington Post escolheu - da AFP, da Reuters e da Getty - para contar esta história. Kiev anda em chamas há dias, a capa da Economist diz que o Inferno é de Putin, mas o que é certo é que as revoluções sempre se fizeram de caras que fogem aos protocolos políticos. É de gente comum, que sonha com algo melhor, que faz a mudança. E prova que as histórias só precisam dos jornalistas para as contarem ao mundo: quando são boas, têm a fibra suficiente para se contarem quase sozinhas. Com elas, podia dar-se um curso inteiro de fotojornalismo, diz Giner. Aqui há mais.






domingo, 16 de fevereiro de 2014

buenos sábados #38


voltemos aos sábados porteños. e ao hábito de passear sem check-lists, pontos turísticos obrigatórios. já lá vão trinta e oito, passei de visitante a habitante e tenho que tratar-me como tal. saímos juntos, os quatro portugueses cá de casa, rumo à Recoleta. programa cultural, centro cultural. exposição de fotografia multicultural: as caras de Buenos Aires que fogem ao argentino comum. os chinos, os brasileiros do samba, os transexuais, os grémios de luta contra o poder, as manifestações, a Casa Rosada fechada aos manifestantes e aos outros. há tanta gente por cá, tanta gente diferente - digo - que me arrisco a dizer que até chega a ser difícil identificar, à primeira, um porteño, só pelas feições e pelo sotaque. manhã passada entre o passeio até lá, as sombras dos jardins da Del Libertador, as bicicletas apressadas e os casais de passeio com os cães (que finalmente têm tempo para passearem os próprios animais, durante a semana o passeio é feito por outros e, portanto, pago). já vos disse que aqui ser passeador de cães é uma profissão legislada a nível local? ah, pois é. isso mesmo. 
do passeio do sol para a cadeira da secretária. entre cadernos, entrevistas transcritas e telefonemas para casa, passa mais um sabadão. e depois domingo. e depois começa tudo outra vez até ao próximo. buenos sábados aqui por buenos aires. 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

amor é tanta coisa

E também é andar na internet e ver/ler/descobrir coisas bonitas.
Esta ilustração animada da portuguesa Carolina Búzio e a miúda, a caminho do aeroporto, de saia às bolinhas parecida com a minha saia Obama.
Esta declaração de amor e este love actually em Nova Iorque.
Voltar a escrever neste blog, ainda que sejam disparates (isso também é amor).
Acompanhar sempre esta página de Facebook e o meu Instagram.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

buenos sábados #37


há trinta e seis sábados que passava o dia em Buenos Aires. este sábado - com visita de quinze dias - metemo-nos no comboio e fomos a Tigre. fica na memória a surpresa de poder usar a SUBE para pagar o bilhete, o preço baixo que sempre espanta, a confusão à entrada do combóio. o vendedor de bolinhos feitos por uma associação de luta contra a droga e a toxicodependência e a resistência àqueles alfajores con dulce de leche que tanto deleitam como engordam. fica a gargalhada de perceber que o vendedor, depois de anunciar os bolinhos, carrega no botão play da lata de Coca-Cola que trazia na mão-e-que-tinha-uma-pen-drive-lá-metida e põe um belo reggaeton a tocar. fica na cabeça o cheiro a carris, a viagem de pé, a imagem daquela família de pais sub-30 e três miúdos sempre a gritar, a chorar e a dizer que não. fica a chegada, com calor e sol. a brasa de dia e o céu que, em Buenos Aires, estava meio encoberto. fica a imagem do céu azul com as nuvens brancas, as paragens familiares, a saída da estação, a imagem da cidade. o cheiro a mediaslunas e a garrapiñadas, os barcos de madeira encostados ao muro de cimento. o museu imponente, as casas lindas e o passeio de barco. o supermercado fluvial que anda de casa em casa - os carros não chegam às ilhas de Tigre e o supermercado, num barco, leva os frescos, as frutas, a água e o gás a cada pontão de cada casa. de Tigre fica o Puerto de Frutos, os preços mais baixos do que na capital. fica o sol e a pele meia queimada, a primeira milanesa a cavalo da Maria Teresa, a minha primeira viagem de combóio em Buenos Aires. fica o regresso já sentadas, a meio da tarde, a saída antes do Retiro, no barrio chino, a sensação boa de ter aproveitado mais um sábado por cá. estava tudo bem em Tigre, garanto. 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

as coisas.

Não gosto de chuva mas, pela primeira vez, estive em Lisboa com dias de chuva e não me custou. O conforto de casa, o calor dos amigos, o revisitar de cafés que antes eram habituais, o cheiro a castanhas assadas na rua, o rever sítios familiares, o sabor da comida caseira, as vozes e os cheiros que fazem parte da vida inteira, as casas que se sabem de olhos fechados. Tanta coisa. É verdade: estar em casa dá-nos a sensação de que a chuva, em vez de ser incómoda, nos completa.

A chuva quente e fria de Lisboa e a chuva tropical de Buenos Aires que arrefece os dias de humidade acima dos 80% que torna o ar quase irrespirável e cola as calças e as t-shirts ao corpo.


Kayden + Rain from Nicole Byon on Vimeo.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

buenos sábados #36


em janeiro os sábados passaram a amados e desejados. o prazer de fazer o pequeno-almoço nas calmas e de poder comer sem pressas acumulado com o sol que deixa passear e o calor ameno de um Verão já pachorrento que não tem pressa em fugir nem necessidade de se afirmar. limpar o quarto, arrumar as papeladas pendentes, escrever mais e pensar melhor no que se escreve. ter tempo para as coisas e ainda sobrar para aproveitar o sofá, ouvir música e ler ao mesmo tempo sem sentir que fica alguma coisa por fazer. ou que essa sensação não pese. esperar. curtir o fim de janeiro. juntar-me a este projecto bonito e arrancar com a minha cor favorita. preparar a chegada da primeira visita do ano. arrancar com este fevereiro curto.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

trinta-e-um.


Janeiro costuma ser mês de muitas festas de anos, muitos bolos e velas, muitas prendas, jantares e contas apertadas ao fim do mês. Janeiro que se preze tem festas de anos acumuladas, finanças arruinadas e um orçamento que estica. Janeiro de há três anos para cá tinha também garantida uma viagem planeada, a abrir o ano com cabeça limpa e renovada. Este ano, Janeiro teve festas de anos à distância, parabéns a você cantados no skype, calor de Verão e humidade de hemisfério sul, contas de cabeça para adequar fuso-horários, garrafas de vinho como prendas de anos e nova redacção no currículo. Ainda que tenha custado voltar, Janeiro passou a correr. Tão a correr que assusta pensar que Fevereiro, que começa já, tem ainda menos três dias para aproveitar. 

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

nove meses de Buenos Aires, ao ritmo dos 90.


Eu ainda não me tinha dado conta. Às vezes acontece, não é? Tão preocupada que andava em entrar na rotina que, só no outro dia quando comentava com o meu pai, percebi. A vida em Buenos Aires, ainda que caótica, é muito mais calma. A conversa surgiu a propósito de uma amiga lhe ter perguntado quando é que eu voltava. E de o meu pai lhe ter dito que em princípio voltava em Abril mas que, ao mesmo tempo, a vida por aqui era mais calma e era assim que se deviam viver os dias. 

A verdade é que eu, desde que falámos no assunto, tenho reparado melhor nesta constatação. Como quando passamos todos os dias por alguém ou alguma coisa e nunca reparamos nela até nos apresentarem essa pessoa ou nos falarem daquele sítio ou daquela coisa.

O meu pai diz que o ritmo de vida na Argentina é mais ou menos como aquele que se vivia em Portugal nos anos 90. Ou pelo menos, as duas semanas que cá esteve fizeram-lhe lembrar essa altura. Não me lembro bem dos anos 90 - andava na escola primária e a velocidade a que passavam os dias só me chateava nas férias porque, passado um mês, me cansava de não fazer nada e só queria forrar livros e cadernos e fazer-me ao estudo. Mas o meu pai queixa-se que agora não tem tempo para nada e que antes os dias pareciam ter muitas mais horas.

Nove meses de Buenos Aires, apesar do caos dos transportes e dos serviços públicos e da inflação e da desorganização e das semanas que passam a correr é, de facto, mais calmo. E essa calma e essa ponderação a olhar para as coisas e mais tempo livre para observar as vidas das pessoas levaram-me a descobrir que:

- É difícil que algum porteño chegue a horas onde quer que seja: quando um assado é às 10 e se combina às 9h30 para se chegar a horas há sempre alguém que chega às 10h10 e diz que para os assados "não há pressa" e "de certeza que ainda não chegou ninguém".

- Os porteños têm um grupo de amigos que vem desde a pré-primária e no qual é difícil entrar. No início das aulas, vivi na pele essas dificuldades: quando acabava o dia de mestrado, lá ia tudo na sua vidinha para casa, ou ter com os amigos, ou fosse o que fosse. Mas nunca, nunca nos encontrávamos depois. Obviamente, com o tempo, houve gente de quem me fui aproximando

- Os cafés podem durar horas. Quando um argentino decide ir tomar um café isso implica sentar-se, namorar a ementa, pedir com calma e aproveitar o momento para dar uma vista de olhos no jornal e beber tranquilamente o seu "cortado", comer uma medialuna e tomar o copo de água com ou sem gás que o café oferece. Às vezes, a bandeja ainda traz umas bolachinhas secas de limão ou de manteiga e, mais raro, um sumo de laranja. Aqui não há aquele café de fugida que eu tomava tantas vezes em Lisboa.

- Eles adoram andar de autocarro. Sim, se em Lisboa eu só andava de metro, aqui a coisa mudou. Porteño que é porteño  prefere o autocarro que, pensando bem tem muitas vantagens. A rede é muito melhor (chegam a todo o lado), a espera é normalmente curta e sai mais barato. Obviamente tem desvantagens: a minha experiência diz-me que é preciso bons braços para aguentar a condução racing e as travagens apertadas.

- Eles aproveitam à séria. Não têm praia mas vestem o biquini e fogem para os parques, para o rio ou para a praia aqui perto. Aproveitam os concertos grátis, as peças de teatro e os espectáculos de dança, de poesia, de bandas mais ou menos conhecidas, de companhias amadoras. Aproveitam as varandas, os passeios na rua e chegam a trazer cadeiras para a rua só para aproveitarem a brisazinha fresca do fim do dia. Aqui não há mar mas nem por isso o pôr-do-sol é menos bonito. O céu fica cor-de-rosa, o céu muito azulinho e é vê-los a todos a aproveitar o fim da tarde em qualquer esplanada pela cidade fora. 

- É preciso ter paciência. A burocracia demora muito, os transportes outro tanto para chegar de um sítio ao outro e é preciso fazer muitas contas de ponderação em relação à demora dos autocarros, à velocidade a que conduz o motorista e o trânsito. Mas se pensarmos que, contra as coisas que não podemos mudar nem vale a pena tentar, os dias ficam mais fáceis. Depois, é encher o peito de coragem e procurar. Sei bem: quem procura, acha.

Há muitas outras coisas mas ficam para a próxima. Ainda há meses pela frente. 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

buenos sábados #35


depois da brasa, o fresco, poder-se-ia dizer por terras de Buenos Aires, a julgar pelo que sempre acontece. a semana a matar-nos devagarinho de tanto calor, a moer-nos a pele e o cabelo. uma humidade louca a fazer os sapatos roer-nos os pés. os dedos engelhados, as raízes do cabelo molhadas da transpiração. quinta-feira de muito calor, os termómetros a baterem recordes e depois sexta de tempestade e sábado bom de sol e fresco e calor moderado. parecia sábado de primavera este sábado trinta e cinco em terras latino-americanas. parecia em clima e em vontade de passear pelo parque, em ganas de andar a pé sem horas, em material para ler, em disponibilidade para sentar na relva e tomar um mate quente. parecia primavera em disponibilidade para passear na Recoleta e conversar com as visitas sem tempo. caminhar e sentar, sentar e caminhar. conversar sobre o tempo, sobre as viagens, sobre a vida em geral, sobre o trabalho e a vontade de crescer e de aproveitar enquanto cá estou e o que há-de vir depois. primavera por haver tempo para, neste sábado bom, ainda encontrar o fascínio e a vontade de continuar a fotografar as ruas de Buenos Aires numa magia que parece a da primeira vez. ao sábado bom número trinta e cinco, a paixão não acabou.

sábado, 25 de janeiro de 2014

O calor aquece o mercado

Buenos Aires está em altas. De calor - estão uns 40 graus à sombra, 80% de humidade e a pele cola a tudo quanto é roupa - e de mercado negro: o dólar passou na semana passada a barreira dos 12 pesos. E, na Argentina, estas coisas do dinheiro são mais complicadas do que noutro país qualquer (excepção feita à Venezuela, que também tem "cepo cambiário", mas isto são outros carnavais, sim?).

É preciso saber estas coisas. Explico: quando o meu avião aterrou em Buenos Aires ninguém me tinha falado do assunto. É normal que se paguem taxas por levantar dinheiro no multibanco mas, com a questão da universidade resolvida por transferência bancária, não me restava outra senão ir levantando maiores quantidades de dinheiro para evitar as comissões o mais possível. Quando eu cheguei a Buenos Aires, o euro oficial rondava os 6 pesos. Ou seja, cada seis pesos que eu levantava no multibanco correspondiam a um euro a menos na minha conta portuguesa mais, obviamente, as comissões. Assim andei nos primeiros três meses: a levantar 1000 pesos de cada vez. Só que, volta e meia, ouvia os zunzuns de uma colega francesa, sempre a espreitar as cotações do "blue".

O blue é o mercado paralelo. O negro, chamamos nós. Na altura, trocava-se cada euro a 9 ou 10 pesos o que, convenhamos, é uma grande diferença. Ou seja: um café podia custar-me 1 euros ou 1,5, percebem? E isso sempre em proporção. Percebi que tinha que arranjar maneira de trazer euros para a Argentina. E pronto. As primeiras visitas trouxeram um envelope com notas. E eu pus-me a caminho e fui trocá-las.

O mercado blue é uma coisa bizarra. E, confesso, na calle Florida, ainda mais. A cada quarteirão há uma mão cheia de gente a dizer com voz de bagaço "cambio", "euro", "dólar", "real". Isto num quarteirão pode não ser nada, mas se falarmos de várias centenas de metros - uns seis ou sete quarteirões seguidos, o caso já muda de figura. Entretanto, alterno o cambio entre um sítio mais perto de casa e pedidos aos rapazes cá de casa.

Na sexta-feira, em reacção ao desgoverno do mercado negro, o governo argentino anunciou que vai acabar com o cepo cambiário a partir desta segunda feira. Os jornais falam de uma medida inesperada, os economistas acreditam que não se vai concretizar e as pessoas, tão habituadas a aumentos de preços semanais, só querem que um quilo do que quer que seja não pule como se não houvesse amanhã. Entretanto, o ministro da economia já veio mais-ou-menos-negar uma parte do anúncio que o chefe de gabinete da presidente Kirchner. Ela, e bem, está em Cuba. Foi mais cedo do que era preciso para "estudar a realidade local". Ora toma. 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

buenos sábados #34


saber as horas ao fim de semana é um exercício de esforço. ao sábado, eu Buenos Aires, eu só quero fazer tempo. fazer tempo porque ainda é cedo para acordar, fazer tempo para o almoço, fazer tempo para sair, fazer tempo para a sessão de cinema, fazer tempo para a festa de anos de um amigo, fazer tempo para ir dormir. sair de casa sem saber bem para onde vou, meter-me sem tempo no autocarro apertado, um calor de morrer, até transpirar sem tempo. descer sem tempo e ficar sem tempo, no parque, sentada na relva, a tomar mate. depois, levantar-me sem tempo e dar uma volta num mercado por ali, perto da Boca, passear pelas ruas de San Telmo, entrar em lojas de antiguidades e velharias, fotografias antigas tiradas com velhas máquinas fotográficas. e depois ir sem pressa comprar o bilhete de cinema. sem tempo, deixar-me fotografar numa parede pintada, sem tempo também olhar para o ecrã do telemóvel e pedir para repetir. ficar, sem tempo contado, sentada a ver as pessoas que esperam pela sessão que também é a minha. rir sem tempo, a vida do lobo de Wall Street. voltar sem tempo para casa, não sem antes passear sem tempo pela margem do rio, a noite de Verão, as pessoas a fazerem o mesmo. sábado bom, o trinta e quatro, aqui.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

vinte e nove.

Teste. Um, dois. Mariana. Esta sou eu. Em constante prova de som. É um exercício difícil, este, de escrever sobre mim. Nasci hoje, isto é, num 14 de Janeiro mas há vinte e nove anos. Só que sinto que, mesmo com a urgência dos dias, nasço todos os dias um bocadinho. [e não nascemos todos?] A magia que isto tem é que nunca me farto. Os dias têm sempre algo de novo.

A culpa talvez seja minha. Ou então do Titú que, de cada vez que eu chegava à sala do avô Adelino me dava um problema matemático para resolver. Isso não fez de mim grande calculadora - nem grande calculista - mas fez-me mais arisca na procura de respostas. Nem tudo é matemática, sei bem. Escolhi ser jornalista pela sensação da eterna novidade do mundo de que fala Alberto Caeiro. Olhar para os desconhecidos e contar a história deles a outros. Mas não inventando. Fazendo-lhes perguntas, usando a minha curiosidade, querendo saber. Às vezes acho que o jornalismo me escolheu porque sinto que não podia ser outra coisa. Sei bem do privilégio que é poder fazer da escrita o trabalho de todos os dias e ter a oportunidade de testemunhar o que acontece com os próprios olhos. Se já somos jornalistas da própria vida, eu quero reportar as vidas dos outros e poder fazer isso faz de mim uma sortuda tremenda.

Emociono-me quando leio poesia, quando vejo um filme bonito e triste ou quando, ao ouvir uma canção qualquer, me vêm à memória imagens de outras alturas e de outros dias. As minhas amigas acham que eu raramente choro (ainda que eu chore, juro). Tenho a mania que o meu tempo estica - nisto saio à minha mãe [e não é que estica mesmo?] - e que, por isso, posso dizer que sim a tudo porque a minha agenda é da família dos elásticos. Não é, já me dei conta, e isso já me trouxe noites mal dormidas e algumas lágrimas momentâneas, que eu às vezes também stresso. Mas depois passa.

O meu treinador de basquetebol dizia que, sempre que eu entrava em jogo se notava porque o ritmo mudava. Eu nunca me chateei com a crítica - sei bem que o desporto nunca foi o meu forte - porque eu não estava lá para ser a melhor, mas para ser o melhor que podia porque adorava lá estar. Às vezes parece-me que esse ritmo mais lento na adolescência serviu de armazém ao ritmo com que agora encho os dias. Na minha agenda, nunca há horas em branco mas há sempre espaço para uma coisa de última hora. No meu iPhone há sempre memória para mais uma fotografia, sempre saldo para uma chamada, sempre bateria para uma mensagem. 

Quando era miúda era calada, sempre compenetrada, concentrada, cuidadosa. Mudei. Continuo cuidadosa mas tenho dias em que sou faladora sem ser tagarela. Continuo sem dizer tudo o que penso mas já dizendo aquilo que em tempos nunca diria. Enervam-me os que falam sem saber, revoltam-me os injustos, dão-me cabo dos nervos os preguiçosos, invejo os despreocupados. Levo-me a sério e levo tão a sério os outros como a mim mesma. Por isso, às vezes custa-me mesmo que os outros não vejam a vida como eu, e isso só resulta num mau feitio tremendo que muita gente não consegue engolir. 

Sou irmã mais velha e isso vê-se sempre - acho eu - e manifesta-se até na maneira como tento sempre proteger os outros. Não serve de desculpa, mas é por isso que sou tão chata, sisuda à primeira vista e por isso, manos, é que não me servem os "satisfaz" no que vocês fazem. Por isso, sou também resultado e gestora do desapego do João, da vontade da Zoca, da ternura da Mi e do coração blindado da Madalena. Tenho um alto no peito igual ao da avó Petite, a ponderação do avô Jú, o jeito de mãos da Titezinha, a vontade de não calar a verdade do avô Mica, os olhos da avó Ester. Tenho o cabelo do pai e a fibra da mãe. Não tenho cócegas por causa da minha madrinha e, até nas mais pequenas coisas, juro e sorrio por ser tantas vezes, "tão parecida com…". Mesmo que não o diga. Lido melhor com críticas do que com elogios. Tenho tanta coisa e tenho tantas saudades. Não sou ainda nada e tenho em mim todos os sonhos do mundo. Tudo ao mesmo tempo. 

Estou há meses para escrever um texto de introdução sobre mim para o meu currículo. E custa-me. Custa-me muito. Porque uma pessoa não se define só pelas palavras, muito menos quando se autodescreve. Que batota esta de fazer um exercício egocêntrico quando eu sou resultado de tantas influências. E dúvidas que levam a certezas. Porque, na verdade, nisto de fazer anos - que já lá vão uns quantos - comemora-se exactamente o quê? O que foi ou que há-de vir?